Este artigo deveria ser lido por todos os profissionais de educação. E, principalmente, pelos nossos legisladores, pensando numa escola pública de qualidade.
Artigo:
A utopia sufoca
a educação de qualidade (Gustavo Ioschpe)
08/04/2012
"Se
a diferença que mais impacta a qualidade de vida das pessoas é a de renda, e se
a fonte principal de renda é o trabalho, então precisamos de um sistema educacional
que coloque ricos e pobres em igualdade de condições para concorrer no mercado
de trabalho"
Um dos males que
assolam nossa educação é a esperança vã de pensadores e legisladores de que uma
escola que mal consegue ensinar o básico resolva todos os problemas sociais e
éticos do país. Eles criaram um sistema com um currículo imenso, sistemas de
livros didáticos em que o objetivo até das disciplinas científicas é formar um
cidadão consciente e tolerante. Responsabilizaram a escola pela formação de
condutas que vão desde a preservação do meio ambiente até os cuidados com a
saúde; instituíram cotas raciais e forçaram as escolas a receber alunos com
necessidades especiais. A agenda maximalista seria uma maneira de sanar
desigualdades e corrigir injustiças. O Brasil deveria questionar essa agenda.
Primeira
pergunta: nossas escolas conseguem dar conta desse recado? A resposta é,
definitivamente, não. Estão aí todas as avaliações nacionais e internacionais
mostrando que a única igualdade que nosso sistema educacional conseguiu atingir
é ser igualmente péssimo. Copiamos o ponto final de programas adotados nos
países europeus sem termos passado pelo desenvolvimento histórico que lhes dá
sustentação.
Segunda pergunta:
esse desejo expansionista faz bem ou mal ao nosso sistema educacional? Será um
caso em que mirar no inatingível ajuda a ampliar o alcançável ou, pelo
contrário, a sobrecarga faz com que a carroça se mova ainda mais devagar?
Acredito que seja o último. Por várias razões. A primeira é simplesmente que
essas demandas todas tornam impossível que o sistema tenha um foco. Perseguir
todas as ideias que aparecem -- mesmo que sejam todas nobres e excelentes -- é
um erro. Infelizmente, a maioria dos nossos intelectuais e legisladores não tem
experiência administrativa, e acredita ser possível resolver qualquer problema
criando uma lei. No confronto entre intenções e realidade, a última sempre
vence. A segunda razão para preocupação é que, com uma agenda tão extensa e
bicéfala -- formar o cidadão virtuoso e o aluno de raciocínio afiado e com
conhecimentos sólidos --, sempre é possível dizer que uma parte não está sendo
cumprida porque a prioridade é a outra: o aluno é analfabeto, mas solidário,
entende? (Com a vantagem de que não há nenhum índice para medir solidariedade.)
E, finalmente, porque quando as intenções ultrapassam a capacidade de execução
do sistema o que ocorre é que o agente -- cada professor ou diretor -- vira um
legislador, cabendo a ele o papel de decidir quais partes das inatingíveis
demandas vai cumprir. Uma medida que deveria estimular a cidadania tem o efeito
oposto: incentiva o desrespeito à lei, que é a base fundamental da vida em
sociedade.
Terceira
pergunta: mesmo que todas essas nobres intenções fossem exequíveis, sua
execução cumpriria as aspirações de seus mentores, construindo um país menos
desigual? Eu diria que não apenas não cumpriria esses objetivos como iria na
direção oposta. Deixe-me dar um exemplo com essas novas matérias inseridas no
currículo do ensino médio -- música, sociologia e filosofia. A lógica que
norteou a decisão é que não seria justo que os alunos pobres fossem privados
dos privilégios intelec-tuais de seus colegas ricos. O que não é justo, a meu
ver, é que a adição dessas disciplinas torna ainda mais difícil para os pobres
se equiparar aos alunos mais ricos nas matérias que realmente vão ser decisivas
em sua vida. A desigualdade entre os dois grupos tende a aumentar. A triste
realidade é que, por viverem em ambientes mais letrados e com pais mais
instruídos, alunos de famílias ricas precisam de menos horas de instrução para
se alfabetizar. É pouco provável que um aluno rico saia da 1ª série sem estar
alfabetizado, enquanto é muito provável que o aluno pobre chegue ao 3º ano
nessa condição. O aluno rico pode, portanto, se dar ao luxo de ter aula de
música. Para nivelar o jogo, o aluno pobre deveria estar usando essas horas
para se recuperar do atraso, especialmente nas habilidades basilares:
português, matemática e ciências. É o domínio dessas habilidades que lhe será
cobrado quando ingressar na vida profissional. Se esses pensadores querem a
escola como niveladora de diferenças, se a diferença que mais impacta a
qualidade de vida das pessoas é a de renda, e se a fonte principal de renda é o
trabalho, então precisamos de um sistema educacional que coloque ricos e pobres
em igualdade de condições para concorrer no mercado de trabalho. O que, por sua
vez, presume uma educação desigual entre pobres e ricos, fazendo com que a
escola dê aos primeiros as competências intelectuais que os últimos já trazem
de casa. Estou argumentando baseado em uma lógica supostamente de esquerda
(digo supostamente porque, nesse caso, é transparente que as boas intenções dos
revolucionários de poltrona só aprofundam as desigualdades que eles pretendem
diminuir).
O mercado de
trabalho valoriza mais as habilidades cognitivas e emocionais não porque os
nossos empregadores sejam mesquinhos, mas porque, em um mercado competitivo,
precisam remunerar seus trabalhadores de acordo com sua produtividade. Essa é a
lógica inquebrantável do sistema de livre-iniciativa. Não adianta pedir ao
gerente de recursos humanos que seja “solidário” na hora da contratação e leve
em conta que os candidatos à vaga vêm de origens sociais diferentes, porque, se
o recrutador selecionar o funcionário menos competente, o mais certo é que em
breve ambos estejam solidariamente no olho da rua. Não conheço nenhum estudo
que demonstre o impacto de uma educação filosoficamente inclusiva sobre o
bem-estar das pessoas. Mas há vários estudos empíricos sobre a desigualdade no
Brasil. O que eles informam é assustador: o fator número 1 na explicação das
desigualdades de renda é, de longe, a desigualdade educacional (disponíveis em
twitter.com/gioschpe). Ao criarmos uma escola sobrecarregada com a missão de não
apenas formar o brasileiro do futuro, mas corrigir as desigualdades de 500 anos
de história, nós nos asseguramos de que ela se tornará um fracasso. A escola
não pode fracassar, pois é a alavanca de salvação do Brasil.
O tipo de escola
pública que queremos é uma discussão em última instância política, e não
técnica. É legítimo, embora estúpido, que a maioria dos brasileiros prefira uma
educação que fracasse em ensinar a tabuada mas ensine bem a fazer um pagode.
Acrescento apenas uma indispensável condição: que a população seja informada,
de modo claro e honesto, sobre as consequências de suas escolhas. Quais as
perdas e os ganhos de cada caminho. O que é, aí sim, antidemocrático e
desonesto é criar a ilusão de que não precisamos fazer escolhas, de que podemos
tudo e de que conseguiremos obter tudo ao mesmo tempo, agora. Infelizmente, é
exatamente isso que vem sendo tentado. Nossas lideranças se valem do abissal
desconhecimento da maioria da população sobre o que é uma educação de
excelência para vender-lhe a possibilidade do paraíso terreno em que
professores despreparados podem formar o novo homem e o profissional de
sucesso. Essa utopia, como todas as outras, acaba em decepção e atraso. Essa
pretensa revolução, como todas as outras, termina beneficiando apenas os
burocratas que a implementam.