Em
Defesa das Árvores
(Rubem
Alves, do livro “O amor que encantou a lua”)
Estava
eu na sala de espera do meu médico trabalhando absorto no meu laptop
para matar o tempo, os “oclinhos” de ver perto na frente dos
olhos, ao longe tudo era um borrão quando, de repente, um borrão
alto se colocou à minha frente, baixei os “oclinhos” para ver à
distância: era um homem que conheci menino, de precoce vocação
científica, posto que menino ainda, se comprazia em experimentos
incendiários com gases mal cheirosos. Depois dos cumprimentos de
praxe e sem mais delongas ele disse: “Rubem, escreva uma crônica
em defesa das árvores.” Havia indignação em sua voz e ele
relatou:
“Havia,
no terreno do meu vizinho, um ipê maravilhoso, árvore muito velha,
tronco grosso, que anualmente produzia uma floração cor-de-rosa,
para espanto e felicidade de todos. Pois, sem maiores avisos, o tal
vizinho cortou o ipê. Fiquei indignado e fui saber das razões do
assassinato. Que mal lhe teria feita aquela árvore mansa? E ele me
explicou que as raízes do velho ipê estavam rachando o seu muro de
tijolos e argamassa. Um ipê que leva cinqüenta anos para crescer
cortado por causa de um muro que se constrói num dia! Aí lhe
perguntei: “Por que não me falou? Eu teria pago a reconstrução
do seu muro…”
E
concluiu: “Você escreve uma crônica?” Tive uma reação
desanimada. Lembrei-me das palavras tristes do Vinícius no seu poema
“O Haver”, em que fala da “sua inútil poesia”. Sinto assim,
de vez em quando, que aquilo que escrevo é inútil. Os que têm
poder nem lêem e se lêem não levam a sério. As razões que movem
a política são as razões dos machados e das serras; não são as
razões da beleza. Escrever, para quê? Para sensibilizar o vizinho
que gosta mais de um muro que de um ipê? O que eu escrevesse só
encontraria eco naqueles que amam mais os ipês que os muros. Mas,
nesse caso minha escritura seria desnecessária. E para os que amam
mais os muros que os ipês ela seria inútil. Aí me lembrei de um
poema de Chuang-Tzu, escrito séculos antes de Cristo: “Eu sei que
não terei sucesso. Tentar forçar os resultados somente aumentaria a
confusão. Não será melhor desistir e parar de me esforçar? Mas,
se eu não me esforçar, quem o fará?” As palavras do sábio foram
uma repreensão ao meu desânimo. Comecei a pensar. Lembrei-me de
fato semelhante acontecido na minha rua. Havia um ipê amarelo que
florescia no mês de julho. O chão ficava dourado com suas flores.
Mas a dona da casa em frente ao ipê e a sua incansável vassoura
deram o nome de “sujeira” ao dourado das flores caídas.
E,
um belo dia, a árvore amanheceu com um anel cortado na sua casca. As
veias pelas quais sua seiva circulava haviam sido seccionadas durante
a noite. O ipê morreu. A vassoura triunfou. Há pessoas cujas idéias
nascem da vassoura. Visitando um amigo que mora num condomínio rico
de Campinas alegrei-me vendo que ele era todo arborizado com
magnólias. As flores das magnólias são quase insignificantes. Mas
o perfume é maravilhoso. Quem respira o perfume de uma magnólia tem
a alma tocada pelo divino. Aí o meu amigo apontou para uma casa do
outro lado da rua. Lá não havia magnólias. E explicou: “A dona
da casa disse que dava muito trabalho varrer as folhas que caíam no
chão.” Agora mesmo, a um quarteirão de onde escrevo, havia três
daquelas árvores que se chamam “Chapéu de Sol”, de folhas
largas e sombra generosa. Pois a dona da casa mandou cortar todos os
galhos das três, ficando só os toquinhos. Ficaram parecidas com
cabides de pendurar chapéu. Mas as árvores não guardam rancor.
Trataram de continuar a viver - e nos toquinhos surgiram brotos
verdes, como um gesto de perdão. Percebendo que as árvores
insistiam em viver, ela mandou que todos os brotos fossem arrancados.
Quando
as serras da CPFL mutilaram as velhas paineiras da Orosimbo Maia, que
todos amavam, houve uma onda de indignação que ocupou as manchetes
do Correio Popular.
Pois
um leitor escreveu aborrecido porque o jornal perdia tanto tempo com
uma coisa sem importância como árvores. O prazer em cortar árvores,
me parece, está ligado à volúpia do poder. Quem corta, tortura ou
mata experimenta o prazer de exercer poder sobre o mais fraco. Mas
acho que o prazer em cortar árvores está ligado a uma coisa mais
sinistra. Suspeito que estejamos vivendo um momento de metamorfose da
nossa condição humana. Até agora temos sido habitantes do mundo da
vida. Nosso habitat é constituído por florestas, animais, rios e
mares. Somos seres biológicos, corpos. Mas agora estamos mudando de
casa. Estamos trocando nossa casa biológica por uma outra casa
eletrônica.
Faz
tempo fiz a travessia dos lagos andinos - cenários maravilhosos,
entre lagos, vulcões e florestas - passando por Bariloche e
terminando em Buenos Aires. Em Bariloche fiquei conhecendo um casal
que fazia o mesmo percurso com dois filhos adolescentes. Fui
reencontrá-los numa das ruas centrais de Buenos Aires. “Graças a
Deus estamos aqui!”, me disse o marido. “Já não aguentávamos
mais: só lagos, montanhas e árvores. Aqui, felizmente, temos os
videogames.” Virei Hulk na mesma hora e lhe disse: “Tomaram a
excursão errada. Seu destino era Las Vegas!” Mas eles nada mais
fizeram que expressar de forma grosseira o que já ficou normal.
Nenhum adolescente troca um vídeo game por jardinagem. Nos filmes de
ficção científica do tipo “Guerra nas Estrelas” que emocionam
milhões não há árvores: somente máquinas com inteligência
eletrônica. Nossas inteligências estão cada vez mais ligadas aos
vídeos e computadores e cada vez mais distantes da natureza. Há
crianças que nunca viram uma galinha de verdade, nunca sentiram o
cheiro de um pinheiro, nunca ouviram o canto do pintassilgo e não
têm prazer em brincar com terra. Pensam que terra é sujeira. Não
sabem que terra é vida. As nossas escolas - seria bom se elas
ensinassem as crianças a amar as árvores. Chamar pelo nome e amar
as paineiras, as sibipirunas, as magnólias, os pinheiros, as
magueiras, as pitangueiras, os jequitibás, os ipês, as
quaresmeiras… Aprendi na escola que os homens são uma forma de
vida mais evoluída que as árvores. Estou brincando com a
possibilidade do contrário: que as árvores sejam mais evoluídas
que nós. Se assim não fosse por que haveriam as Escrituras Sagradas
de comparar o homem feliz com uma árvore plantada junto a ribeiros
de águas? Com o que concorda Alberto Caeiro: “Sejamos simples e
calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de
nós belos como as árvores e os regatos…” Deus nos amará quando
formos como as árvores!
Ninguém
vai para o inferno. Os que não amam as árvores também vão para o
céu. Mas, como todos sabem, o céu é o lugar onde se encontram as
coisas que amamos. O lugar onde se encontram as coisas que não
amamos é o inferno. Assim, para os que não amam as árvores, um
lugar com bosques, florestas, flores e riachos seria o inferno. Eles
não irão para o inferno de árvores. Irão para o seu céu sem
árvores, pois é isso que eles amam.
Morarão
numa cidade planejada pelo Niemeyer onde tudo será feito de concreto
segundo formas geométricas perfeitas, em nada semelhantes às coisas
vivas. Os prédios do Congresso Nacional, em Brasília, são uma
metade de esfera voltada para cima e uma metade de esfera voltada
para baixo, sem janelas. Na cidade planejada pelo Niemeyer as árvores
não sujarão as calçadas com suas folhas e flores. As árvores
serão de concreto, semelhantes aos cogumelos: uma esfera cortada
pelo meio equilibrando-se sobre um cilindro. O bom disso é que não
haverá despesas com jardineiros. E as donas de casa não precisarão
varrer a calçada.
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